segunda-feira, 15 de agosto de 2016

OS QUATRO PERIGOS ESCONDIDOS DOS GRUPOS DE ESCRITA

Traduzi daqui: https://janefriedman.com/dangers-of-writing-groups

 (Aliás, todo o site da Jane Friedman tem um conteúdo excelente. Fica aí a sugestão para quem não conhecia. O texto original é uma excelente fonte de MUITOS links para outros textos sobre escrita, processo criativo, edição de manuscritos e temas correlatos. Não incluí os links na tradução porque só interessam a quem lê em inglês, e, como estes já teriam acesso a eles no original, seria um trabalho redundante.)

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 Escritores amam a ideia de grupos de escrita. Escrever é, afinal, muito solitário. Você se senta só, engalfinhando-se com suas ideias no papel, lutando para afastar os ataques de dúvida constantes. Seus amigos de sempre provavelmente não entendem o que você está fazendo nem podem ajudá-lo. Portanto faz perfeito sentido unir-se a outros escritores que possam ajudá-lo a navegar pelas alegrias e dores do processo criativo.
Infelizmente, a realidade dos grupos de escrita é bem mais complicada que isso. Por trás das boas intenções, sérios perigos o espreitam.
Em meu trabalho como instrutor no mundo dos livros, vejo frequentemente os danos que os grupos de escrita podem causar, e não são benignos. Vão de frustrações fatais à profunda insegurança, e às vezes anos de esforço jogados fora. Nesta postagem irei enumerar os perigos mais comuns e também propor algumas maneiras para que você possa melhorar seu(s) grupo(s) de modo que lhe deem mais do que você precisa -- e menos do que não precisa.
Para ilustrar meu ponto, vou referir-me à sabedoria encontrada em "Creativity, Inc", livro de Ed Catmull, presidente da Pixar & Disney Animation. No livro, Catmull mostra os vários modos pelos quais o poderoso estúdio geriu a criatividade, e, no processo, produziu algumas das histórias mais queridas de nosso tempo. Ele trata de gerenciamento numa escala bem grande -- hierarquias de departamentos e projetos multimilionários para filmes --, mas o cerne da questão é que todos temos que gerenciar nossa própria criatividade se formos fazer qualquer bom trabalho, e a sabedoria de Ed se aplica a qualquer um de nós.
1. NINGUÉM DIZ A VERDADE, E NINGUÉM QUER MESMO OUVI-LA
Muitos grupos silenciam sobre flagrantes fraquezas dos trabalhos que são compartilhados e às vezes mesmo mentem descaradamente sobre a qualidade deles, porque não querem magoar aquele membro. Tudo o que ele ouve, portanto, são elogios ou uma crítica bastante vaga e sem valor prático, e assim creem que sua escrita é sólida (se não fenomenal) e se aplicam a escrever outro tanto de coisas ruins.
Elogios são maravilhosos -- faz bem ouvir -- mas não têm muita utilidade para escritores empenhados em escrever livros que envolvam os leitores. Escritores têm que encontrar meios de lidar com as críticas, mesmo as mais ásperas, mas grupos de escrita não tendem a criar essa casca grossa, e, como resultado, ninguém se desenvolve, nem aprende, e as pessoas se iludem acerca de seus trabalhos -- acreditando-os melhores do que são.
Na Pixar, dizer a verdade é parte central do processo criativo. Catmull escreveu:
"Nos primeiríssimos dias da Pixar, John, Andrew, Pete, Lee e Joe fizeram-se uma promessa. Não importava o que acontecesse, sempre se diriam a verdade. E assim fizeram por reconhecer o quão importante e raro é o feedback sincero e como, sem ele, nossos filmes sofreriam. Então e agora, a expressão que usamos para descrever este tipo de crítica construtiva e gentil é 'bons apontamentos'".
Antes de chegarmos à parte dos bons apontamentos, observemos a promessa de dizer a verdade. É o ponto crítico necessário a um grupo de escritores -- não uma promessa implícita, mas um compromisso verdadeiro. Cada um dos membros têm que entender a promessa de dizer a verdade, acreditar nela, e dar as boas vindas à vez deles no assento de fogo. Isto começa com uma mudança de mentalidade, como Catmull lindamente descreve:
"Naturalmente, todo diretor preferiria ouvir que seu filme é uma obra-prima. Mas, por conta do modo como nosso grupo é estruturado, a dor em contar que as falhas são evidentes ou que são necessárias revisões é minimizada. Raramente um diretor toma a defensiva, pois ninguém lhe está impondo o que tem que fazer. O filme -- não o diretor -- está sob escrutínio. Este princípio confunde as pessoas, mas é essencial: você não é a sua ideia, e se você se identificar demais com ela, se sentirá ofendido se elas forem desafiadas. Para um sistema de feedback saudável, você tem que tirar da equação dinâmicas de poder -- permitir-se, em outras palavras, a se focar no problema, não na pessoa.
Tente as soluções abaixo em seu grupo de escrita:
--> Cada escritor do grupo deve concordar em dizer a verdade, e a aceitá-la.
Ajuda muito se os membros têm níveis semelhantes de perícia e de experiência, e se compartilham dos mesmos -- e claros -- objetivos. Alguém escrevendo um livro porque é catártico e divertido está num ponto bem diferente daquele almejando a publicação, e talvez seja preciso alterar a composição do grupo de modo a se comprometer com o princípio de dizer a verdade. Implementar tais mudanças pode ser de partir o coração -- mas FAZ PARTE DE DIZER A VERDADE, também.
--> Cada membro deve falar com gentileza e manter um sentido de esperança quando for a vez deles de criticar.
Ataques mesquinhos que o deixam sem fôlego e sentindo-se diminuído são das realidades mais danosas de todas. Há uma diferença entre ser sincero e ser mesquinho. Não permita mesquinhez.
--> Cada membro tem que respirar fundo e dar as boas-vindas à verdade quando for a vez dele de ouvir!
Lembre-se de que quando alguém está criticando seu trabalho, não está criticando você.
--> Enfim, cada membro tem que se comprometer a entender o que "bons apontamentos" significam. O que nos leva ao item 2.
2. NEM SEMPRE ESCRITORES QUE ESTÃO NA PELEJA SÃO OS MELHORES JUÍZES DAQUELES QUE ESTÃO TAMBÉM SE DEBATENDO COM A ESCRITA.
Na Pixar, os "bons apontamentos" são divulgados numa reunião conhecida como "Braintrust". "A Brainstrust," Catmull escreve, "é formada por pessoas com profundo conhecimento das práticas de 'storytelling' e, geralmente, pessoas que já passaram elas mesmas por aquele processo." Este é um ponto crítico ao qual muitos grupos de escrita não aderem, porque NÃO PODEM aderir. São normalmente compostos por escritores que ainda estão eles mesmos buscando seus próprios caminhos pela primeira vez, o que é um dos maiores perigos de fazer parte de um.
Não há nada de errado em estar nesta luta ainda. A peleja é parte do processo criativo de qualquer um, em qualquer nível que esteja, mas por que acreditar que juntar-se com pessoas que estão lutando com as mesmas coisas que você, e sem experiência nesta luta, é um bom modo de desenvolver seu trabalho? Sim, você pode obter camaradagem, senso de pertencimento -- o que é bom --, mas as chances de conseguir ajuda específica, focada e útil para sua história é baixa. Por quê? Segundo Catmull:
"Enquanto problemas num filme são bem fáceis de identificar, as fonte do problema são muitas vezes bem difíceis de acessar... Pense num paciente que se queixa de dores no joelho -- causadas pelo seu pé chato. Se você operar o joelho dele, não só não resolverá a dor como pode mesmo agravá-la. Para aliviar a dor, tem-se que descobrir e lidar com a fonte do problema."
Um grupo de escritores destreinados em perceber os problemas da história ou de um argumento de praxe os entendem erradamente, ou apenas parcialmente certo, numa abordagem inconsciente baseada em gostos pessoais. O que não é bom. Tampouco há assistência prática em como progredir.
Você consegue feedbacks do tipo "não está funcionando", mas não o treino e paciência necessários para consertar o problema, e menos ainda a compreensão editorial que evitará cair nos mesmos erros outra vez. As pessoas podem até oferecer ideias de como ELES resolveriam a questão, como ELES veem a sua história, o que ELES fariam em seu lugar, mas esse é o caminho certo para esmagar projetos novos e balançar sua confiança.
Então o que é exatamente um bom apontamento? Aqui vai o princípio descrito por Catmull em seu site:
"Feedback sincero é o único modo de garantir excelência. Quando fizer sugestões, esteja certo de incluir:
O que está errado
o que está faltando
O que não ficou claro
O que não faz qualquer sentido
Um bom apontamento é específico. Um bom apontamento não faz exigências. Acima de tudo, o bom apontamento inspira."
Copie este princípio e plastifique, para olhar para ele quando for fazer suas críticas num grupo. Não é sobre elogios (embora Catmull afirme que a maioria das reuniões da Brainstrust principiem por elogios). E não é sobre COMO o escritor deve consertar os problemas. É sobre identificar as fraquezas do texto de forma específica, articulá-las e ajudar o autor a enxergá-las, e ele mesmo decidir sobre como consertá-las.
Tente os seguintes ajustes no seu grupo de escrita:
--> Use os critérios de Catmull para fornecer bons apontamentos.
Faça cada apontamento no formato acima, e não se permita outros comentários. O que significa nunca dizer, "Oohh, e se o personagem viesse de outro planeta?" ou "Acho que você devia começar pelo capítulo 5," ou "Você é um puta escritor, estou com inveja, quisera escrever como você!"
--> Burile suas habilidades em analisar histórias aprendendo a se autoeditar.
Eu recomendo imenso "The Artful Edit", sobre princípios de edição (Susan Bell); "Handling the truth", sobre a importância da sinceridade (Beth Kephart); e "Wired for Story", sobre escrever ficção planejada para dar ao leitor aquilo pelo que o cérebro dele anseia (Lisa Cron). Leia estes livros em seu grupo de escrita, discuta-os e avalie seu próprio trabalho de acordo com os princípios propostos. Será uma ferramenta de aprendizagem poderosa! Você talvez também goste de meu guia de 40 páginas, "Como editar um manuscrito completo", que você pode baixar de graça.
3. NEM SEMPRE ESCRITORES QUE ESTÃO NA PELEJA SÃO OS MELHORES JUÍZES DAQUELES QUE ESTÃO TAMBÉM SE DEBATENDO COM A ESCRITA, PARTE 2.
Isso é tão importante que citarei de novo, de outra forma.
Consideremos que nem você nem os demais membros do grupo de escrita possam afiar suas habilidades de analisar histórias de um dia pro outro. O que é em geral verdade. Muitos escritores acham que entendem de histórias e narrativa porque gostam de ler, e reconhecem uma boa história quando leem uma. Mas isso é bem diferente de saber como uma narrativa dramática (ficção) ou argumentativa (não-ficção) é construída, ou saber como passar emoção para a página, ou saber como levar em consideração a expectativa do leitor enquanto escreve. São habilidades muito diferentes. Alguns escritores são gênios naturais nisso, mas são raros. A maioria está burilando suas habilidades de narrar e planejar em relação à própria escrita, não também em relação à escrita alheia.
Então, como podem ajudar uns aos outros em relação aos respectivos trabalhos? Se as pessoas do grupo não têm prática e conhecimento no diagnóstico de problemas, não o façam! Sério. Façam não. Considerem transformar o grupo num lugar sobre camaradagem, apoio, troca de informações, em vez de discutir as palavras no papel.
Tente as seguintes reformas no grupo:
--> Dê a cada membro tempo para falar sobre as fraquezas que ELES veem em seu próprio trabalho e as soluções que ELES estão se propondo.
Deixe-os tentar soluções num espaço acolhedor. Às vezes, só articular o próprio problema é meio caminho andado para resolvê-lo. Percebo que muitos escritores sabem o que está errado em seus trabalhos se você oferecer-lhes tempo e espaço para que se confrontem com a verdade, e isso é melhor que pedir a pessoas destreinadas que o façam por eles.
--> Dê a cada um um momento para falar das dificuldades que está tendo em arrumar tempo para escrever.
Ou da dúvida que está tendo sobre a validade de sua história, sua falta de fé em seu valor como escritor. Nestas experiências, que podem ser fundamentais para o sucesso na escrita, somos todos especialistas (manejar o tempo, encarar dúvidas, ser corajoso).
--> Atribua projetos de pesquisas aos membros.
Passe tempo compartilhando o que leu sobre mudanças no mercado, tendências de preços, o que os leitores têm feito, e dito, e pensado, e como escritores têm atingido leitores. Acompanhe sites como "Scratch Magazine", sobre a escrita em si, ou "Shelf Awareness", sobre o mercado de livros. Identifique blogs úteis ("Save the Cat", "Shawn Coyne") e se force a incluir sites voltados para redes sociais e empreendedorismo ("Alexis Grant", "Joanna Penn" e "Dan Blank"). Isso tudo é tão importante para ser um escritor bem-sucedido quanto as palavras no papel. Não acredito que escrita de excelência possa advir de escritores que só querem vender, mas também acredito que escritores que ignoram as realidades de como livros são vendidos, e ignoram as demandas dos leitores bem como seus competidores, estão escrevendo com a cabeça enterrada na areia.
Sucesso editorial é frequentemente encarado como sendo mais uma questão de sorte e 'timing' -- e, ainda que sorte e 'timing' tenham seu papel, conhecer a demanda dos leitores e a realidade do mundo editorial é quase sempre um fator, também.
--> Guarde seus caraminguás para investir num verdadeiro expert que possa ajudá-lo na escrita em si.
Pode ser um workshop de um grupo online (Gotham Writers Workshop, UCLA Extension Writer's Program ou Writer's Digest); uma aula numa faculdade perto de você, ou contratando um editor ou coach editorial.
4. FRACASSAR NÃO É UMA OPÇÃO NUM GRUPO DE ESCRITORES, MAS É PARTE DO PROCESSO DE ESCRITA.
Escrever é um empreendimento criativo, e empreendimentos criativos são uma bagunça. As coisas às vezes pioram antes de melhorar. Podem demorar muito até entrarem em foco, enquanto você quica pra lá e pra cá entre entre o que pensava estar fazendo e o que de fato fazia, entre o começo e o fim da história, entre uma linha narrativa ou outra. Fracasso faz parte do território -- é uma grande parte dele. Grupos de escrita, por outro lado, tendem apenas a celebrar os passos para a frente, e um pensamento linear e claro.
Isso acontece porque os grupos se debruçam sobre uma pequena fatia de trabalho de cada vez. Se esta fatia calhar de ser lógica, cronológica, clara e bem escrita, você ganha joinhas. Problemas sobre como aquela fatia se encaixa no resto da história, como sustenta a premissa, ou o quanto se alinha à estrutura geral são amplamente ignoradas -- e muitos dos problemas mais comuns que identifico nas histórias são justamente nessas áreas. Quando visto como um microcosmo, um capítulo pode ser lindo, emocionante e bem polido, e ainda assim não funcionar no conjunto da obra -- não guiar a história ou o argumento em direção a uma resolução clara e harmônica.
Algumas das melhores passagens do livro de Catmull relatam a bagunça dos primeiros estágios de histórias queridas como "Toy Story". Você pode imaginar Woody jamais sendo um personagem felpudo e disforme? Ele era, e, como você deve bem poder imaginar, isso impactava cada elemento da história. Os escritores e produtores permaneceram com esse personagem por um bom tempo antes de chegarem ao cowboy ligeiramente neurótico que idolatra seu dono Andy e fica nervoso com a chegada do novato, Buzz. A intenção de Catmull em nos tornar cientes da transformação de Woody é nos mostrar que o processo criativo nunca é linear e cronológico, e que você deve dar espaço ao fracasso:
"Os filmes da Pixar não são bons desde o início, e nosso trabalho é torná-los bons. Esta ideia -- de que todos os filmes que hoje consideramos brilhantes já foram horrorosos -- é um conceito que muitos acham difícil de pegar. A criatividade tem que começar de algum ponto, e cremos no poder do feedback estimulante e sincero e no processo interativo de retrabalhar, retrabalhar, e retrabalhar de novo, até que uma história capenga encontre seu caminho ou um personagem oco encontre sua alma."
Tente os seguintes ajustes no seu grupo de escrita -- todos reiterações dos pontos listados acima.
--> Diga a verdade.
Se algo não estiver funcionando -- se tem falhas fatais, a concepção é ruim, ou tem problemas lógicos subjacentes, diga, o mais especificamente quanto possível. Não se reprima para soar bonzinho. Ser bonzinho é salvar o escritor de passar anos escrevendo na direção errada.
--> Esteja aberto a críticas. Se você receber uma dura crítica por algo que tenha escrito, considere que você talvez tenha que rascunhar tudo de novo, recomeçar. Permita que esta realidade faça parte do processo. Alguns escritores dizem que eles sabem que algo está funcionando quando começam a jogar muitas páginas fora.
--> Faça bons apontamentos, e peça por eles, também!
Encoraje os membros do seu grupo a pedir pela ajuda que acham que precisam. Em vez de esperar feedbacks genéricos, encoraje-o a dizer, "Estou tendo problemas na passagem em que conto meu sistema para elaborar resumos. Por favor, me digam se deixei algo de fora." Isto é pedir por um bom apontamento.
--> Falar dos fracassos.
Falar das dúvidas e agonias. Deixar a dor ser parte da mistura, porque criar não é fácil. É um trabalho emocional, não importa o gênero. Escritores precisam de apoio -- verdadeiro, não num nível mais superficial -- e precisam de um lugar onde possam falhar. Deixe com que o grupo de escrita seja esse lugar, e estará provendo uma ajuda inestimável.

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